Projetos para duplicação do Morro dos Cavalos, na BR-101 Sul, são contestados há 13 anos
Dnit promete licitar obra do túnel duplo em maio, mas sem solução da demarcação de terra indígena trabalhos não podem começar
Edson Rosa
Venilton Alves, 37 anos, que três vezes por semana viaja entre Curitiba e Porto Alegre ao volante da carreta com 20 toneladas de cimento a granel, aprendeu a dirigir sem pressa. Também não marca mais horário para chegar.
Protegido pelo ar condicionado e pela película escura da cabine, ele é um dos caminhoneiros que na manhã de sábado demorou uma hora para percorrer apenas 12 quilômetros entre o acesso à praia do Pontal e o Morro dos Cavalos, em Palhoça, na Grande Florianópolis, um dos gargalos da inacabada duplicação do trecho sul da BR-101.
Fernando Mendes/ND
Tercílio Sarder lamenta ter que enfrentar três vezes por semana trânsito no maior gargalo da 101
O estresse, Alves supera com a companhia da mulher, Ana Maria, mas do prejuízo o caminhoneiro não escapa. A fila até chegar ao ponto de afunilamento das pistas no Morro dos Cavalos e o tempo perdido na ponte de Cabeçudas, em Laguna, acrescem em 50% as despesas com combustível (óleo diesel), manutenção de freios e embreagem e alimentação do motorista.
Normalmente feito em 10 horas, o trecho de 800 quilômetros parece ficar bem mais longo e, no ritmo de Venilton, é completado em 16 ou 18 horas. “É muito tempo e dinheiro perdidos na estrada. Neste trecho de Palhoça, a solução imediata seria a quarta pista, mas está enrolado”, diz, antes de seguir viagem.
Veterano na estrada, Tercílio Sarder, 66, também passa de duas a três vezes por semana no trecho afunilado da 101, no Morro dos Cavalos. “A obra não sai e fica desse jeito, tudo trancado”, diz, indignado. Sarder transporta no caminhão 15 toneladas de matéria prima, desde Belo Horizonte, para a indústria cerâmica de Criciúma.
Quem está de folga também não entende o transtorno no Morro dos Cavalos. “A gente tira o fim de semana para relaxar, mas se estressa ainda mais”, respondeu Ronaldo Rosa, 48, da janela do carro. Morador em São José, ele pretendia ir à praia da Pinheira, mas voltou do elevado da Praia de Fora. “
É incrível, mas a Funai [Fundação Nacional do Índio] para a estrada em nome de uma aldeia que nunca existiu”, critica.
Água gelada e esmola na fila
Dilema para motoristas, o engarrafamento é ganha-pão de famílias que moram às margens da estrada. Ou para quem já se especializou no negócio e consegue se deslocar aonde estiver a fila, como o autônomo Marcelo Godói, que se reveza entre o Morro dos Cavalos e a ponte de Cabeçudas, em Laguna.
Um dos pontos estratégicos dele é o recuo da bica d’água, na Praia de Fora. É lá que ele estaciona a velha Brasília e organiza no carrinho o isopor com água e refrigerantes, salgadinhos, pipoca, balas e carregadores de telefone celular. “Só não trago cerveja”, garante. Godói costuma ficar no asfalto das 10, às 19 horas, às vezes precisa repor o estoque e fatura de R$ 300 a R$ 500 por dia.
Aldemar Silva, 37, e o inseparável Totó se destacam entre os carros parados na fila. Deficiente físico desde a adolescência, quando tentou separar uma briga de casal e foi alvejado por três tiros na coluna, em Curitiba, por alguns trocados ele desafia o perigo na cadeira de rodas improvisada. “É o único jeito de sobreviver”, diz.
Fernado Mendes/ND
Deficiente físico, Aldemar desafia o perigo da estrada para pedir esmola
Manobras arriscadas para fugir do congestionamento
Com apenas uma viatura para fiscalizar do km 211, em Palhoça, ao 245, em Paulo Lopes, os policiais da PRF (Polícia Rodoviária Federal) tentam, mas não conseguem evitar infrações de trânsito no trecho engarrafado. As mais comuns são trafegar pelo acostamento e conversões sobre as pistas, na Enseada do Brito, manobras de risco utilizadas por motoristas dispostos a furar a fila.
Posicionados em ponto estratégico da rodovia, na Praia de Fora, os policiais Dilmar e Dalsenter, de plantão no sábado, em 30 minutos notificaram 50 carros circulando no acostamento. “Isso se repete todos os dias”, diz Dilmar. A solução para o gargalo, segundo a dupla, é a construção imediata da quarta pista.
No sábado, quando a fila se estendeu entre o km 231, no Pontal, e o 223, no Morro dos Cavalos, houve também quem cortou caminho pela Praia de Fora e Enseada do Brito, desafiando a polícia e a prudência. Um dos motoristas, com a caminhonete lotada de crianças, arrastou as peças que separam as duas pistas, ignorou os riscos de acidentes e atravessou na frente dos carros que seguiam no sentido Sul/Norte. Manobra que em cinco minutos foi repetida por uma dezena de outros veículos, e só foi contida mais tarde com a presença ostensiva no local de uma viatura da Autopista Litoral Sul, concessionária da rodovia duplicada.
Há mais de 13 anos, projetos para duplicação do trecho são contestados
A duplicação do Morro dos Cavalos se tornou o maior entrave da ampliação da BR-101 Sul por a localidade, em Palhoça, estar situada em área de conflito.
Foi demarcada como território guarani, mas ainda não foi homologado e é questionado na Justiça. Há mais de 13 anos, projetos para o trecho da rodovia, que recebe o fluxo de 18 mil carros por dia, são contestados.
Os questionamentos da demarcação e a exigência da Funai (Fundação Nacional do Índio) de só autorizar as obras com a retirada das 77 famílias de pescadores e maricultores é a mais recente polêmica. A saída dos não indígenas depende da presidente Dilma Rousseff homologar a demarcação.
Não é de hoje que os órgãos públicos se mostram morosos e conflitantes para resolver a situação da obra. O primeiro projeto para o Morro dos Cavalos foi construir apenas um túnel. Mas, em 2001, o Ministério Público Federal, questionou a proposta original. A segunda opção foi construir uma faixa paralela a atual, só que o TCU (Tribunal de Contas da União), em 2004, pediu a suspensão da concorrência pública devido a denúncias de prejuízos ambientais. Assim, se chegou à proposta de túnel duplo em 2007, aceito pela comunidade guarani.
O Dnit (Departamento Nacional de Infraestrutura Terrestre) lançou o edital do projeto básico e daí para frente as promessas de conclusão dos estudos ambientais se arrastaram até o final do ano passado, quando o órgão conseguiu entregar todos as informações solicitadas pelo Ibama.
Até mesmo a quarta faixa provisória foi autorizada, mas a licença prévia só garante o lançamento da licitação, já que a Funai condicionou o começo dos trabalhos somente após a retirada das famílias não indígenas.
O Dnit, por meio da assessoria de imprensa, afirma que termina o projeto executivo em abril e lança a concorrência em maio. Se o entrave estiver resolvido até lá, a quarta faixa ficaria pronta antes da próxima temporada de verão. Já o túnel, em 2017, conforme o último relatório da Fiesc (Federação das Indústrias de Santa Catarina) sobre o andamento da ampliação da BR-101 Sul, publicado em 2013. As outras duas grandes obras de duplicação, o Túnel do Formigão (em Tubarão) e a ponte de Laguna, estão previstos para serem entregues em maio de 2015.
A reportagem tentou contato por telefone com representantes da Funai em Florianópolis, mas não teve retorno.
Duas ações na Justiça
A saída dos moradores é questionada na Justiça. Duas petições ao STF (Superior Tribunal Federal) requerem a anulação do processo de demarcação de terra com o argumento de que o estudo antropológico para demarcação é inválido. Isso porque teria levado em conta a existência de índios guarani em 2002, quando a Constituição determina se levar em conta a presença em 1988. A intenção é evitar a retirada dos pescadores e maricultores.
Fernando Mendes/ND
Itamar Valmor Ventura vive da maricultura na praia de Araçatuba
Uma das petições terá novo desdobramento no dia 1° de abril, quando moradores da região serão ouvidos pelo juiz Marcelo Krás Borges, da Vara Ambiental de Florianópolis. A ação civil pública contra a demarcação foi movida por um dos moradores locais em 2013. A outra é mais recente, protocolada pela PGE (Procuradoria Geral do Estado) no último dia 24. Embora o governo estadual defenda que a ação não deva arrastar ainda mais a construção do túnel, normalmente a Justiça determina que não sejam feitas intervenções nas terras,
enquanto a tramitação do processo esteja em andamento.
Tensão entre pescadores e índios
Escondidos entre a encosta do Morro dos Cavalos e as águas calmas da baía Sul, 15 famílias de maricultores da praia da Araçatuba estão entre as 77 incluídas na ação de desintrusão para demarcação de 1.988 hectares reivindicados aos índios da etnia guarani.
A saída dos pescadores é a condição imposta pela Funai para liberar a quarta pista no Morro dos Cavalos.
Fernando Mendes/ND
Doralina Pereira faz artesanato guarani na beira da estrada
A natureza tem sido insuficiente para diminuir a tensão na comunidade, composta também por algumas casas de veraneio. O medo aumentou desde que foi requisitada proteção da Polícia Federal aos índios do Morro dos Cavalos, em resposta à ação da Procuradoria Geral do Estado no STF (Superior Tribunal Federal) questionando o encaminhamento do processo na Funai.
“E nossa segurança, quem garante? Nos acusam de cortar a água da aldeia, e podem invadir e nos tirar a força”, teme Cleusa Terezinha Almeida, 53, neta de pescadores e que sobrevive com o que o filho tira do mar. Ex-vereador em São José, Paulo Motta, 55, que tem casa há 35 anos e se mudou para a praia, classifica como “chantagem” a decisão da Funai.
Resquício do período colonial, o único acesso à praia construído em 1740 pelo engenheiro militar e presidente da Província, brigadeiro José da Silva Paes, segundo Motta, provam que no século 18 não moravam índios na região. Postes da antiga rede telegráfica, do final do século 19, também ainda estão lá.
“Essa foi a primeira ligação entre a Capital e o Sul do Brasil, é histórica”, argumenta, e apresenta o vizinho Valmor Libertino Ventura, 60. Um dos mais antigos do lugar, ele e os filhos vivem da pesca. Da mesma forma que fazia há 200 anos o avô dele, que só não conhecia a maricultura.
Alheia à discussão, Doralina Pereira, 55, única adulta na parte externa da aldeia guarani na tarde de sábado, faz artesanato para vender na beira da estrada. Saiu do Rio Grande do Sul e mora há cinco anos no Morro dos Cavalos. “Nosso único problema é o barulho dos carros”, diz.
Colaborou Roberta Kremer
Publicado em 03/02/14-16:13
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Podem sentar e esperar porque ambas as obras, quarta faixa e túnel, ainda vão demorar muito para sair.