José de Souza Martins *
À noitinha da próxima quarta-feira, dia 9, o papa entrará na Basílica de São Bento pela porta principal e caminhará lentamente pela nave central em direção à capelamor, onde os monges cantarão o
Tu es Petrus ('Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja...'). Bento XVI estará pisando em solo sagrado e histórico. Desde 1598, os monges beneditinos louvam a Deus naquele mesmo lugar, com cânticos e orações. Ali existiu a aldeia do cacique Tibiriçá, que está sepultado na cripta da Catedral de São Paulo, onde o papa encontrará os bispos do Brasil, na tarde da sexta-feira.
O caminho de Bento XVI, entre a porta da basílica e o altarmor, será um longo trajeto por dentro da alma do Brasil. Nessa caminhada, o papa verá, à sua esquerda, a magnífica escultura barroca, em cedro, de Nossa Senhora da Conceição, vinda de Portugal, doada aos beneditinos pela família de Pedro Taques, o historiador, no século 18. Mais adiante, à sua direita, perto da capela do Santíssimo Sacramento, verá o comovente Cristo Agônico, esculpido, em São Paulo, pelo mestre-entalhador José Pereira Mutas, em 1777. A seus pés, como muitos trabalhadores de hoje, muitos escravos apresentaram suas súplicas. Até o dia em que os monges de São Bento, em 1871, antecipando-se em 17 anos à Lei Áurea, concederam a liberdade a todos os seus cativos em todo o Brasil. É pouco provável que o papa não erga os olhos para contemplar, no alto, à direita, o magnífico vitral que representa o passamento do Patriarca São Bento, de braços abertos, como pedira a Deus. O vitral, como as pinturas da basílica, foi concebido por d. Adalberto Gresnigt, holandês que era monge do mosteiro belga de Beuron, de onde veio o primeiro grupo de monges, que no começo do século 20 restabeleceu a presença beneditina em São Paulo. O vitral foi construído em Munique, na Baviera do papa.
Diante da capela, passará sobre o jazigo de Fernão Dias Paes, o Caçador de Esmeraldas, e de sua mulher, Maria Betim, benfeitores do mosteiro e da Igreja, aos quais doaram as terras do que viria a ser a Fazenda de São Caetano do Tijucuçu.
No pequeno saguão de acesso aos seus aposentos, Bento XVI verá, sempre que por ali passar, a bela escultura de São Bernardo, do século 17, de frei Agostinho da Piedade, artista e monge português, que viveu no Brasil. Esse São Bernardo de barro, no século 18, foi levado para a capela dos monges beneditinos na Borda do Campo, dando nome à Fazenda de São Bernardo e à atual localidade de São Bernardo do Campo.
Sob o mesmo teto que acolherá Bento XVI, numa cela tranqüila vive, já velhinho, o monge d. Cândido Padim. Ele, que já foi bispo-auxiliar do Rio de Janeiro e bispo de Bauru, juntará sua voz à dos outros monges nos cânticos e orações celebrativos da mais ilustre visita à sua comunidade beneditina. Lembrará de quando foi designado para dirigir e enquadrar a Juventude Universitária Católica, em 1961, e fez tudo ao contrário, apoiando a inquietação dos moços. Lembrará do Concílio Vaticano II e de quando o episcopado latino-americano, nas conferências de Medellín e Puebla de que participou, tomou ciência da injustiça e da miséria na América Latina.
Lembrará de quando, em 1968, na assembléia da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil denunciou a Lei de Segurança Nacional como lei autoritária e fascista. Lembrará de quando foi designado pela CNBB como um de seus representantes na Conferência de Santo Domingo e teve seu nome vetado pela Cúria Romana.
O papa João Paulo II, quando soube, chorou.
Sob o mesmo teto, o da suave tradição de acolhimento, de trabalho e de oração dos monges de São Bento, o papa e o monge dormirão seu justo sono e a diversidade da Igreja repousará em paz. Lá fora, o sussurro das orações do povo será a lua cheia dessa noite. Joseph Ratzinger nunca terá estado tão perto do Terceiro Mundo. No sacramento dessa comunhão, é ali que, de fato, terá início a 5ª Conferência Episcopal da América Latina e do Caribe.
*José de Souza Martins é professor titular de Sociologia da Faculdade de Filosofia da USP
O Estado de São Paulo