"Não é um lugar só para ser reconstruído"
Para Daniel Libeskind, projeto que substituirá as Torres Gêmeas será sagrado.
Polonês naturalizado americano, Daniel Libeskind é nome reconhecido na arquitetura mundial. Seu projeto mais notório, hoje, é o de revitalização do Ground Zero, local onde ficavam as Torres Gêmeas, em Nova York. Em conversa por telefone com a coluna, Libeskind não quis entrar em detalhes mas admitiu a dificuldade de encontrar um consenso para o que será erguido no local. “Ele envolve muitas pessoas querendo dar opiniões no projeto: a Prefeitura de Nova York, as famílias das vítimas, ambientalistas. Não será só uma construção abstrata. Será preciso dar significado àquele local, torná-lo simbólico”, explica o arquiteto.
Simpático, bem-humorado, Libeskind adora o Brasil. Tanto assim que da sua prancheta, onde criou projetos para Europa, Ásia, Canadá e EUA, sai agora o primeiro para a América Latina, destinado a São Paulo. Contratado pela JHSF, ele desenhou um edifício residencial de 13 andares, com lançamento previsto para o início de novembro, com um novo conceito de residência: cada apartamento tem uma planta exclusiva.
O arquiteto é incansável. Aos 64 anos, abriu um novo horizonte: desenha cadeiras, mesas e até jogo de chá. Aqui vão os principais trechos da conversa.
Com projetos no mundo inteiro, como você lida com as diferentes culturas? Faz uma imersão?
Definitivamente, o mais importante é entrar na singularidade, no espírito do lugar. Não há substituto para isso. Não basta conhecer o lugar como se olha um mapa. É preciso entender a sua história, reconhecer seu potencial de futuro. É a tradição, a energia e a singularidade do lugar que fazem a imaginação fluir. Só assim é possível reinventar lugares. É preciso ver a luz. E, quando eu digo luz, não falo somente da solar, mas a luz dos olhos das pessoas. Isso faz parte da luminosidade do projeto.
Arquitetos são artistas. Você acha difícil a arquitetura de São Paulo, por exemplo?
É uma metrópole fantástica. Claro que há feiura também. Mas eu acho que São Paulo testemunha uma quantidade enorme de energia criativa. Sem medida. Depois que estive a primeira vez aqui, voltei dizendo que Nova York está para São Paulo assim como San Geminiano está para Manhattan.
São Paulo é o quê comparado à Manhattan?
Manhattan é o símbolo da cidade do século XX, enquanto São Paulo é essa selvageria com mil possibilidades. É claro que apresenta todos os problemas que as grandes cidades em desenvolvimento rápido têm. Mas é fantástica.
Já foi ao Rio?
Sim. Rio é de uma beleza natural estonteante. Ela domina a cidade. É muito diferente de São Paulo. É como comparar Los Angeles e Nova York.
Você declarou admirar o trabalho de Oscar Niemeyer, como descreveria sua obra? Conhece outros arquitetos brasileiros?
Conheço também o trabalho de Paulo Mendes da Rocha e de Roberto Burle Marx. Mas muito melhor, o de Niemeyer. Quando aterrissei em Nova York para estudar arquitetura, em 1965, meu primeiro projeto foi justamente uma análise de Brasília. Peguei todos os desenhos e documentos originais e recriei em cima deles. Ficou bonito. O que eu mais admiro em Niemeyer é seu espírito livre e seu engajamento político. Aprecio sua integridade.
Considera ter também espírito social e político?
Busco trabalhar em lugares que são reais. Onde haja possibilidades democráticas, acessibilidades. Onde prédios não são somente pontos da sociedade, mas mexem com a cultura do lugar.
Selecionado para recriar o local onde ficavam as Torres Gêmeas, como vê a área?
É um ponto extremamente político. Envolve muitas pessoas querendo dar opiniões no projeto: a Prefeitura de Nova York, as famílias da vítimas, ambientalistas. Não será só uma construção abstrata. Será preciso dar significado àquele local, torná-lo simbólico. Neste momento, estamos caminhando rapidamente. Foi difícil, com tantos advogados envolvidos.
Com certeza, não vai dar para agradar todo mundo. Como pretende fazer?
É preciso transformar essa diversidade de opiniões e interesses em um consenso, numa grande harmonia. Lembre-se que este é o motivo pelo qual estamos construindo. Há divisões de trabalho e uma ideia central que sustenta tudo.
Exatamente em que ponto está o andamento do projeto?
Ano que vem, o memorial será aberto. As ruas começarão a ser reconectadas. Até já dá para ver um pouco do projeto. A Torre 4 está subindo. As pessoas vão começar a entender o poder do projeto, sua forma, sua luz. Será muito poderoso.
De quando você começou o projeto até hoje, quantas alterações já foram feitas?
Olha, o projeto atual está muito próximo do meu original. Entraram exigências, como da área de segurança, mas nada que tenha interferido na minha criação. Posso assegurar que o desenho final está do jeito que idealizei.
Algum problema em “trabalhar” em um local onde ocorreram tantas mortes?
Não. Sinto-me motivado. Não é um lugar somente para ser reconstruído, é para ser sagrado. Será um ícone do novo século.
Qual foi o peso que teve a questão ambiental na idealização do seu projeto?
Bom, só um idiota não consideraria isso como uma questão primordial. Aliás, ela sempre foi essencial. As construções ancestrais, como as pirâmides do Egito, não eram erguidas de maneira abstrata. Eram orientadas pelo sol, pelo ambiente. No meio do caminho, nós nos perdemos e isso está voltando. Não podemos continuar a perder essa energia. A arquitetura tem que assumir sua parcela de responsabilidade e construir prédios que sejam sustentáveis e vitais para o ambiente.
Você é requisitado por diversos países e governos, já rejeitou muitas propostas? Como toma essa decisão? Olha pela perspectiva política?
Não. Eu preciso me sentir confortável. É a atmosfera. Não pode ser um lugar em que não me sinta seguro na locomoção. Tampouco pode ser um lugar opressivo. Veja bem, não é uma decisão política isolada e sim a sensação mais ampla do lugar.
Faria um projeto na China? O que acha do sistema do governo?
Talvez. Eu admiro a mudança da China. Lógico que há críticas ao governo. Mas quando você está nas ruas de Xangai dá pra perceber uma grande transformação nas pessoas. Eu vejo um grande potencial no país, para além da discussão governamental.
Se você tivesse de escolher seus três melhores projetos, quais seriam?
Ah, não consigo. É como pedir para escolher entre os meus três filhos (risos). Cada projeto é como se fosse um ser humano. É claro que o meu primeiro filho sempre será o primogênito. Como o Museu Judaico, em Berlim, meu primeiro projeto. Eu nunca tinha desenhado nada antes.
Você provavelmente não tem controle sobre seus filhos como pode ter sobre seus projetos. Como se sente?
Essa é a beleza da vida. É interação com as gerações futuras. Tem corpo e alma. Prédio sem alma também não vive.
Fonte: O Estado de S. Paulo