À beira-mar, interiores e partido arquitetônico ganham autonomia
A forma irregular do terreno que abriga a unidade carioca do hotel Fasano, projetada pelo francês Philippe Starck, é sintomática de sua privilegiada localização. Posicionado na curva que demarca o início de Ipanema, o edifício tem fachada secionada em ângulo obtuso, acompanhando o desenho da avenida beira-mar e abrindo visuais desde a pedra do Arpoador até o morro Dois Irmãos, no final do Leblon.
O projeto começou há cerca de oito anos, intervalo de tempo em que mudaram tanto o programa quanto o gabarito da edificação. Originalmente concebido como residencial, em dez pavimentos, o edifício teve a licença de construção revogada ainda na etapa inicial da obra - quando se escavava o subsolo -, por causa da lei complementar municipal 47/2000. Conhecida como Lei da Sombra, ela restringiu a altura dos novos prédios em toda a orla do Rio de Janeiro, condicionando-a ao requisito de não gerar sombra no calçadão e na faixa de areia.
A conseqüente perda de dois pavimentos conduziu à paralisação temporária dos trabalhos e à inevitável mudança de programa. Entrou em cena, então, o Faena Group, da Argentina, responsável por boa parte da arquitetura corporativa de requalificação da região do Puerto Madero, naquele país. Novo câmbio de rotas e, finalmente, saíram Alan Faena e sua equipe para dar lugar ao grupo Fasano e ao arquiteto francês Philippe Starck. Todo esse processo foi acompanhado pela equipe carioca dos arquitetos Eduardo Mondolfo e Cláudia Ruiz, encarregados do desenvolvimento e do detalhamento de todas as versões do projeto, incluindo a proposta implantada pelo arquiteto francês.
Idealizado, então, como luxuoso hotel de lazer, o edifício faz refletir sobre o conceito cenográfico de um arquiteto estrangeiro - em outras palavras, sobre a particular liberdade de lidar com questões como a eloqüência do partido arquitetônico, a conexão entre interior e exterior à beira-mar e a tão recorrente verdade estrutural em projetos brasileiros. Nenhum desses aspectos é afirmativamente sublinhado pelo projeto de Starck. O que equivale a dizer que nele convivem de forma autônoma a quase singeleza do partido e da volumetria e a sofisticação dos interiores.
Externamente, a restrição do gabarito se tornou o próprio elemento de identidade do projeto, com a malha regular das varandas privativas sinalizando a relativamente restrita área disponível à hotelaria. Democraticamente, e quase sem mudança de escala, todos os apartamentos - desde as unidades com 30 metros até aquelas com 130 - são representados por módulos avarandados que sintetizam o conceito de fruição individual e contida da paisagem. Neles, madeira e elementos metálicos em tons escuros, pouco refletivos, dão a idéia de desfrute longínquo da orla, ainda que a praia se encontre a poucos metros de distância.
Tanto os quartos de frente quanto os laterais e os de fundo são pontuados pelas varandas, de modo que os recuos se transformaram em jardins. No interior, a regularidade da fachada é resolvida com a setorização intrincada dos apartamentos, dispostos ao longo de hall central com forma triangular.
Poltronas dos designers Carlo Mollino (desenhada para Minola House, 1944) e Gaetano Pesce (Donna, 1969) suavizam o cenário austero desses espaços centrais de circulação, marcados pela iluminação difusa proveniente do piso - projeto do LD Studio, da equipe de Mônica Lobo -, pelo isolamento do exterior e pela regularidade dos painéis de madeira que conformam as paredes.
A setorização triangular, em conjunto com o ângulo da fachada, implica uma malha estrutural pouco expressiva no térreo, pavimento por natureza menos fragmentado, dominado por espaços amplos. Starck e equipe substituem os pilares inclinados do corpo do edifício por robustas colunas frontais que têm forma circular, dimensões e modulação provavelmente influenciadas pela referência arquitetônica da orla. Cria-se, assim, a colunata do térreo e volta à cena a referência à praia.
Mantém-se, contudo, o contato intermediado com a rua, com a paisagem local, de forma que também a fachada envidraçada funcione como artifício cenográfico. A conexão entre interior e exterior é, assim, novamente permeada, nesse caso através da setorização - o balcão do restaurante, por exemplo, fica de costas para a praia - e de elementos do design de interiores.
A cota térrea, portanto, normalmente cara à arquitetura como espaço de conexão com o exterior, aqui simplesmente aponta a implantação do hotel na orla carioca através de sua evidente linguagem de embasamento. Ela se destaca visualmente dos andares superiores pela diferença tanto de materiais quanto de modulação, ao mesmo tempo em que se mescla ao entorno por meio de referências à arquitetura local.
Nesse ponto fica mais evidente a concepção do projeto a quatro mãos, o teor da parceria entre Starck e Rogério Fasano na criação dos interiores. Embora mantida a base cenográfica da arquitetura - painéis divisórios feitos com material têxtil parecem flutuar no espaço através de caminhos curvos -, rebaixa-se o freqüente estranhamento que caracteriza os projetos de Starck. Ou seja, no lugar da confrontação direta entre o contemporâneo e o antigo, entre a austeridade do ambiente e as irreverentes peças de design - presentes em vários de seus projetos para hotéis -, o clima é deslocado para a convivência entre iguais. Cores e materiais - a madeira sobretudo, sempre tão indicativa do Brasil - entram em sintonia para ambientar os móveis do carioca Sergio Rodrigues e do extinto Studio Branco & Preto, enquanto um enorme balcão de pequiá, madeira paraense, conforma a recepção.
O projeto de luminotécnica assinado por Mônica Lobo e equipe refina tal economia de meios expressivos, mesclando-se à arquitetura a fim de embutir equipamentos - não aparecem luminárias -, criando superfícies com iluminação difusa e homogênea em contraposição a artifícios decorativos.
O térreo, em certo sentido, é o meio de representação dos materiais e do design brasileiro, carioca, vinculados aos anos 1950/60. Starck está mais afastado neste território, voltando a aparecer com maior ênfase em detalhes dos apartamentos e na cobertura, onde a bela piscina de mármore, com cantos chanfrados e aparência de espelho d’água, é permeada por peças desenhadas por ele. Este andar panorâmico, com visão de 180 graus, é mesmo o ponto de apoteose do projeto. Destaca-se o contraponto entre o tom minimalista da arquitetura e a deslumbrante paisagem, vista com a reserva do espaço aéreo.
Texto resumido a partir de reportagem
de Evelise Grunow
Publicada originalmente em PROJETODESIGN
Edição 338 Abril de 2008
Philippe Starck (Paris, 1949) iniciou a carreira decorando casas noturnas, ao que se seguiu a decoração do Palácio Eliseu para o então presidente francês François Mitterrand e uma série de trabalhos de arquitetura e interiores de hotéis, como o Royalt (França), o Paramount (Nova York), o Delano (Miami) e o Mondrian (Los Angeles). É o autor de premiadas peças de mobiliário e de design industrial, tendo aberto sua própria empresa de criação em 1979