A CASA DE FICALHO
A Casa de Ficalho situava-se na região do Baixo Alentejo, na margem esquerda do Guadiana, no concelho de Serpa, pertencente ao distrito de Beja. Neste trabalho estudamo-la no período compreendido entre 1882 e 1903, durante o qual foram seus titulares António de Melo Breyner Teles da Silva (1806-1894), marquês de Ficalho, e, por sua morte, seu filho, Francisco Manuel de Melo Breyner (1837-1903), o conde de Ficalho. Este, filho único, foi o herdeiro universal do pai e quem, desde o início daquele período, conduzia a Casa e, como tal, era o decisor a cujo perfil nos importa fazer uma aproximação.
Estamos em face de uma família de longa tradição aristocrática enraizada na povoação de Serpa, a qual é encimada pelo o seu palácio e em torno da qual se organizava o seu património fundiário (figura 1.1). O seu titular/gestor era uma individualidade pertencente à nobreza hereditária e à inteligência do terceiro terço do século XIX.
A Casa de Ficalho reunia, como veremos, as características de grande domínio fundiário e é, sob esse ponto de vista, objecto da nossa investigação. Nesta, procuramos acompanhar estudos recentes da historiografia, principalmente da última década, que, baseados em estudos de caso, identificam os actores e as suas condicionantes ambientais, culturais, políticas e sociais para analisar as formas de gestão dos grandes patrimónios e, em geral, para uma mais precisa determinação dos processos de tomada de decisões em contextos determinados . Alguns destes estudos, em particular os que incidem sobre o século XIX, se têm posto em evidência diferentes modos de gestão dos patrimónios, mostram que essas diferenças se prendem com as peculiaridades dos tempos, dos espaços e dos contextos e das características dos titulares . Nesse âmbito pode questionar-se a utilidade da expressão “grandes domínios aristocráticos” para traduzir a existência de uma especificidade própria ou de um modo de gestão específico dentro da grande propriedade fundiária. Bertrand Goujon, num estudo sobre três domínios fundiários pertencentes a uma família da alta aristocracia europeia, considera justificar-se o uso daquela expressão porque, escreve, se “os grandes domínios aristocráticos apresentam numerosos traços característicos da grande propriedade fundiária sem distinção da qualidade nobre ou plebeia do seu possuidor, eles revestem-se, contudo, aos olhos dos seus proprietários fundiários e das populações englobantes, de um valor subjectivo, uma vez que o domínio aristocrático reside também no olhar que se tem sobre ele, que lhe é relativamente próprio” . Esta não é certamente uma questão menor para o estudo da decisão. Porém, neste trabalho o nosso propósito é apenas analisar e discutir os principais critérios de gestão dos grandes domínios fundiários do Sul. Quais as motivações ou se esse valor subjectivo de que fala Goujon explica ou não tais critérios fica fora das possibilidades de resposta deste trabalho, mais que não seja pela própria informação disponível. Por outro lado, importa reter as particularidades da história de cada região e que, de acordo com Hélder da Fonseca, a “Revolução Liberal introduziu na sociedade portuguesa novos critérios de avaliação social, valorizou a riqueza e o saber, matizou ou eliminou os estatutos de privilégio tradicionais e reduziu o peso dos proprietários institucionais”. A nova hierarquia social baseava-se essencialmente na desigualdade quanto aos rendimentos, posse de bens e meios de produção. Neste quadro teórico, o autor opta pelo conceito de elite para definir e caracterizar o grupo mais proeminente na vida económica eborense, onde reuniu indivíduos com origens, tradições económicas e culturais e experiências de vida activa tão distintas, como aristocratas, lavradores e negociantes, e concluiu por estratégias económicas comuns, designadamente no investimento fundiário .
Neste capítulo efectuamos uma apresentação da Casa de Ficalho sob três aspectos: a composição do domínio fundiário, a exploração agrícola da Casa no quadro dos sistemas de produção agrícolas praticados na região e do contexto sócio-económico e o perfil do titular da Casa.
1 – O domínio fundiário da Casa de Ficalho
A Casa de Ficalho constituiu um extenso domínio fundiário, que se estendia entre as freguesias de Brinches, Santa Maria, São Salvador, Aldeia Nova de São Bento e Vila
Verde de Ficalho, composto, ao tempo do conde de Ficalho e de seu pai, por várias herdades, coutadas, courelas, quintas, ferragiais, hortas, terras de semear, vinhas, olivais, “vargens”, moinhos, terras matosas, uns em propriedade perfeita e outros em propriedade imperfeita , neste caso com direitos de propriedade sem posse ou direitos de propriedade com posse, mas sujeita a encargos fundiários . Pertenciam ainda ao mesmo domínio vários prédios urbanos: as casas senhoriais – o castelo na vila de Serpa o Eirado e as Salas na Vila Verde de Ficalho , nomes por que eram conhecidas localmente – e outras diversas moradias e quintais.
Integrado por parte de um antigo morgadio instituído no século XVI , assim como por prédios arrematados em hasta pública e foros remidos, sofreu e aproveitou as transformações impostas pelas mudanças sócio-políticas e económicas ocorridas principalmente ao longo dos 2.º e 3.º quartéis do século XIX e estaria estabilizado, na forma como o descrevemos, no princípio dos anos 80.
A descrição que se segue tem como principal fonte de informação documentos depositados no Cartório da Casa de Ficalho (C. C. F.), que consultámos: