Do último andar do prédio mais alto de Porto Alegre, Paulo Levacov (E) acompanha as mutações do centro da cidade (foto Júlio Cordeiro/ZH)
O senhor das alturas
Localizado em uma península estreita, o Centro não cresceu apenas para os lados, via aterros no Guaíba. Também inchou para cima, multiplicando arranha-céus. A sanha vertical do bairro é o tema de hoje, penúltimo dia da série que desde domingo expõe as feridas e sugere remédios para a área central de Porto Alegre.
ITAMAR MELO
Ninguém mora mais longe do chão em Porto Alegre do que o engenheiro Paulo Ricardo Levacov, 83 anos. Natural do Rio de Janeiro e ex-morador de metrópoles brasileiras e estrangeiras, ele escolheu o Centro de sua infância como moradia definitiva. Faz quatro décadas que reside a cem metros do solo, no 32º e último andar do Edifício Santa Cruz, o mais alto da Capital.
Do topo, olhando os quarteirões coalhados de arranha-céus, evoca o Centro preenchido por prédios de dois ou três andares dos tempos de menino. Os pais se estabeleceram no final da Rua Riachuelo em 1929, aos sete anos de Levacov. No endereço funcionava o negócio da família, uma loja de chapéus femininos, então artigo obrigatório.
- Àquela época as pessoas ainda colocavam cadeiras de palha na calçada para tomar chimarrão vestidas com pijamas listrados - recorda.
Sob um retrato que pendia de uma parede da chapelaria brilhava o dístico jamais esquecido: "Riograndessizemos o Brasil votando em Getúlio Vargas". Tempos depois, a dois quarteirões de sua casa, na Praça do Portão, o menino acompanhou a partida das tropas getulistas que fariam a Revolução de 1930.
Outra lembrança marcante é a do imenso receptor arredondado, ligado a uma antena da vizinha Confeitaria Rocco, pelo qual acompanhou transmissões radiofônicas pioneiras que eletrizavam os porto-alegrenses.
Pouco do Centro daquela época existe fora da memória de Levacov. Quando percorre as ruas, ele reconhece raros prédios remanescentes, como o Chalé da Praça 15 e o edifício do Banco Safra, antes endereço da Farmácia Carvalho e do restaurante Ghilosso, de massas famosas. Não há sombra da elegância da Rua da Praia onde presenciava o footing.
- As moças, bem-vestidas e com chapéus, desfilavam pelas calçadas, e os rapazes permaneciam parados na rua, olhando para elas - descreve.
Como engenheiro, ele se engajou na verticalização
Em 1946, depois de um período prolongado fora do Rio Grande do Sul, o já engenheiro Levacov retornou a Porto Alegre por causa da mulher, gaúcha. Surpreendeu-se com um Centro em plena efervescência, no qual surgiam avenidas, viadutos e arranha-céus, como o suntuoso Sulacap, então o maior da cidade, que viu erguer-se do nada. Como engenheiro, logo estaria engajado nesse processo de verticalização.
- Nos anos 50, quando construía um edifício na Rua da Praia, em frente ao cinema Cacique, encontrei na escavação um antigo atracadouro de navios, prova de que o Guaíba chegava até ali. Achei também garrafas de vinho muito antigas, que guardei até há pouco tempo.
Levacov mudou-se com a família para o topo do Edifício Santa Cruz em 1966, quando o apartamento de 200 metros quadrados ficou pronto. Era um desejo da mulher, que queria morar junto à agitação da Rua da Praia, mas Levacov encantou-se com a vista espetacular que alcança até 150 quilômetros de distância: dos janelões vislumbra a área central, todo o Delta do Jacuí, a entrada da Lagoa dos Patos e a Serra Geral.
Apesar da degradação do Centro (Levacov foi assaltado quatro vezes nas oito décadas de vida, todas elas ao longo do último ano, por batedores de carteira da região), ele não cogita de deixar o bairro.
- Todo fim de tarde vejo buzinarem furiosamente os automóveis. São pessoas que levam 30 minutos, uma hora ou até duas para chegar em casa. Morando no Centro não tenho esse problema - diz.
1905: Há 101 anos, uma das edificações mais altas que se podia ver do Guaíba era a Igreja das Dores
2006: Hoje é um desafio identificar o templo católico em meio ao concreto que se impôs na área central
Saída paulista
A maior cidade do país combate a deterioração do seu Centro arrasando edifícios. No final de 2005, a prefeitura de São Paulo declarou de utilidade pública uma área 105 mil metros quadrados.
Essa saída radical pode servir de exemplo para Porto Alegre? Segundo o arquiteto Carlos Maximiliano Fayet, sim. Um exemplo: ele sugere transformar a "cidade-fantasma" que se estende entre o Largo Visconde do Cairu e a rodoviária em um grande condomínio de qualidade.