Raio X da base da pirâmide
A Philips comprou no Brasil a VMI, uma fábrica de equipamentos hospitalares com a qual não conseguia competir. O que isso ensina sobre a tecnologia nos mercados emergentes?
por Eduardo Ferraz
Fotos Beto Riginik
SALA DE PROVAS A Philips quer manter a cultura empreendedora e ágil da VMI, que permite criar em Lagoa Santa, Minas Gerais, um novo aparelho de raios X em apenas cinco meses, pela metade do custo dos holandese
NEGÓCIO EM FAMÍLIA Silvia, Otávio Viegas e três filhos junto ao aparelho de ressonância magnética da empresa. Eles formam a cúpula da VMI, tomam decisões rápidas e trabalham de olho na realidade do mercado nacional
O que leva uma gigante multinacional como a Philips, que obtém um faturamento anual de US$ 36 bilhões, a passar quase dois anos negociando a compra de uma pequena empresa mineira que fatura pouco mais de R$ 40 milhões? Não, a empresa em questão, localizada em Lagoa Santa, nos arredores de Belo Horizonte, não inventou um sistema revolucionário de vendas por internet. Tampouco criou um tipo novo e extraordinário de iluminação. Na verdade, não produziu qualquer tecnologia única no mundo. O que ela tem de especial - a empresa chama-se VMI Sistemas Médicos e fabrica aparelhos de diagnóstico por imagem, como raios X ou mamógrafos - é o fato de incorporar, em pequena escala, tudo aquilo que a Philips almeja. Explica-se: em maio de 2006, Gerard Kleisterlee, presidente mundial da Philips, reuniu cerca de 150 executivos da companhia em Nova Délhi, na Índia, para informar que a partir de então a meta seria crescer por meio de uma atuação mais agressiva nos mercados emergentes. Como? Dando mais liberdade às suas subsidiárias para trabalhar de acordo com as demandas do cliente local. E a VMI com isso?
Bom, a VMI é fera num mercado emergente estratégico - o Brasil. Criada com poucos recursos em 1985, ela desafiou os grandes do setor, como a Siemens, a Hitachi e a própria Philips, e conseguiu garantir uma presença marcante em hospitais e clínicas espalhados pelo território nacional. Hoje, um em cada três aparelhos de raios X vendidos no Brasil sai da empresa mineira - enquanto a Philips manquitola com 13% de participação no segmento. Para conseguir isso, um de seus principais trunfos é a agilidade. Um exemplo? Numa sexta-feira de novembro, Silvia Carvalho - co-fundadora da empresa ao lado do marido, Otávio Viegas - está na fábrica da companhia quando recebe uma ligação no celular e conversa sobre uma cirurgia. Ao desligar, explica: "Há exatamente uma semana, um médico nos ligou dizendo que precisava urgentemente de um arco cirúrgico (aparelho que mostra imagens contínuas do interior do corpo) para uma cirurgia que seria realizada hoje", disse Silvia. "Construímos o aparelho, fizemos a calibragem e, como não dava tempo para treinar um funcionário do próprio hospital a utilizá-lo, um de nossos técnicos foi participar da operação. Quem me ligou agora foi ele, o Edson, para me dizer que a intervenção foi um sucesso."
A Philips quer aprender com esses exemplos da VMI. "Ao invés de chegar lá e impor nossa cultura, queremos criar uma blindagem e descobrir como eles conseguem atuar tão bem na base da pirâmide", diz Daurio Speranzini Junior, vice-presidente para a América Latina da divisão de Sistemas Médicos da Philips. "Se olharmos o nosso slogan, 'sense and simplicity' (bom senso e simplicidade), vemos que hoje ele combina muito mais com a VMI do que com a própria Philips." Trabalhar com a base da pirâmide significa entender que a realidade dos hospitais brasileiros é diferente daquela dos europeus e americanos. Um aparelho de raios X da VMI é vendido, em média, por metade do preço dos aparelhos importados. Um modelo compacto da VMI, por exemplo, custa US$ 140 mil. Um similar da Philips, fabricado em Hamburgo, sai por US$ 300 mil. Está certo, o modelo que vem de fora tem funções adicionais. Mas só alguns hospitais de primeira linha, como o Sírio-Libanês, de São Paulo, estão dispostos a pagar pela diferença. A grande maioria vai procurar algo mais barato que cumpra o papel. Desde que foram lançados esses dois modelos, a VMI já vendeu no Brasil 30 unidades, ante apenas uma da Philips. Além de hospitais, uma boa parte da clientela da VMI é formada por clínicas pequenas, que não teriam condições de ter aparelho próprio se dependessem de importados. Para entender os clientes emergentes, a Philips garantiu no contrato de compra, assinado em junho passado, que o casal fundador permanecesse à frente do negócio por dois anos. Tenta, assim, preservar a alma da empresa.
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Essa alma chama-se Otávio Viegas, mineiro de 57 anos, com voz grave de barítono e um bigode de proporções iraquianas. Sua história tem ares de saga. Filho de um alfaiate e de uma dona de casa, aos nove anos de idade já tinha fama no bairro da Sagrada Família, em Belo Horizonte, por consertar rádios e outros aparelhos da vizinhança. Curiosamente, acabou tornando-se uma referência local na reparação de uma novidade que chegava ao Brasil, o Philishave, aparelho de barbear elétrico da Philips. Quando alguém chegava numa loja autorizada com um Philishave queimado, os técnicos diziam que era difícil importar a peça de reposição, mas que tinha um menino que consertava. "Era eu", diz Viegas, rindo. "Só uma criança teria paciência para desenrolar todo o fio da bobina e achar o ponto partido para soldá-lo." O caminho do menino precoce já estava traçado. Adolescente, trabalhou com o tio, Antonio Viegas, que vendia equipamentos de som, e participou da sonorização do estádio do Mineirão. A especialização em equipamentos médicos veio após a conclusão do curso de técnico eletrônico, em 1972. Ele e um outro tio, Geraldo Moreira, então funcionário da Siemens, abriram uma empresa de assistência técnica que prosperou e chegou a atuar em vários estados. Viegas comprou a parte do tio e o passo seguinte foi criar a companhia que se tornaria uma pedra no sapato das multinacionais.
A LUTA CONTINUA? Viegas sempre saúda os funcionários da fábrica erguendo o punho direito no ar. No início das grandes reuniões, o hino nacional é tocado. O espírito que imperava era "nós contra as multinacionais". Agora, a VMI é, ela mesma, internacional
Ela começou a operar num galpão alugado de 1,3 mil metros quadrados com 12 funcionários e Viegas no comando da engenharia. Para pagar o primeiro salário da turma, ele e Silvia, formada em enfermagem, precisaram vender o caminhão que tinham. Depois, vieram as dívidas bancárias. "Mas o Otávio tinha um sonho", diz Silvia. "Ele dizia que o Brasil precisava ter uma indústria própria de aparelhos de raios X." Esse viés patriótico, aliás, ainda resiste na empresa. Há cerca de 50 bandeiras do Brasil espalhadas pela companhia (e uma num broche permanentemente preso ao paletó de Viegas). Antes de cada reunião importante, todos cantam o hino nacional, ritual que se repete duas ou três vezes por mês. "É uma coisa de emocionar", diz Speranzini Junior, da Philips, que já presenciou a cena. "Os funcionários têm um espírito de grupo muito forte. São eles contra as multinacionais." Em 22 anos de história, a empresa sofreu apenas três processos trabalhistas, que ganhou. Se um empregado pede demissão e depois de alguns meses volta atrás, a VMI o reemprega. Isso já aconteceu 20 vezes. Viegas, Silvia e os três filhos que trabalham na empresa (uma outra filha cuida da pequena construtora da família) almoçam com os funcionários no refeitório, pegam fila e comem os mesmos pratos. Nesse ambiente, a saudação que Viegas faz aos 90 técnicos do chão de fábrica, ao invés de forçada, parece natural: quando passa por eles, o patrão ergue o braço direito no ar, com o punho cerrado. A turma entende o gesto imediatamente - os resultados no mercado mostram isso.